Por José Homero Adabo – Contador e Vice-Presidente Administrativo do Sescon Campinas

Frequentemente os contadores se defrontam com operações de doação de imóveis, quotas sociais e outros bens e direitos de pais para seus filhos, com reflexo sobre o IR devido na operação.

Muito embora, estas operações sejam realizadas a título gratuito, sofrem a incidência do ITCMD — que é um tributo já pacificado quanto à base de cálculo, alíquota e incidência – e do IR, já bem mais complexo. 

Neste ponto, já temos a presença de dois tributos (ITCMD e IR), distintos entre si, mas incidentes sobre uma mesma operação e com base imputável de tributação muito semelhante. No Estado de São Paulo, o ITCMD é de 4,0% sobre o valor de referência ou valor venal ou de mercado do bem ou direito doado e o IR sobre o ganho de capital, calculado sobre a diferença entre o valor da operação (valor de referência ou venal ou de mercado) e o valor de custo constante da última declaração do imposto de renda do doador.

O ganho de capital sobre heranças e doações sofreu alterações através de um recente entendimento do STF e por isso é necessária uma boa compreensão para a correta orientação aos nossos clientes.

Hoje, está em vigor o Art. 23 da Lei nº 9.532/1997 que prevê que “na transferência de direito de propriedade por sucessão, nos casos de herança, legado ou por doação em adiantamento de legítima, os bens e direitos poderão ser avaliados a valor de mercado ou pelo valor constante da declaração de bens do de cujus ou do doador.”. (grifamos). Aqui é uma opção do contribuinte.

Se os bens e direitos forem transferidos pelo valor de custo da última declaração de bens, nada há que ser tributado, pois não haverá ganho de capital.

Mas, se a transferência for feita a valor de mercado, a diferença a maior entre este valor e o custo declarado será tributado pelo IR à alíquota de 15%. O IR deverá ser pago pelo doador nos casos de doação em adiantamento da legítima ou pelo inventariante, em nome do espólio, se for por transferência “causa mortis” de bens e direitos.

O herdeiro ou o donatário (quem recebeu a doação) deverá informar em sua declaração de bens o bem ou direito recebido pelo valor que houver sido efetuada a transferência. Para efeitos de apuração do ganho de capital em futuras alienações, o herdeiro ou donatário tomará como custo o valor desta transferência recebida.

É importante compreender que a doação de bens ou direitos caracteriza alienação e se sujeita à apuração do ganho de capital, se efetuada por valor superior ao constante na última declaração de bens e direitos do doador.

Assim, para os casos de transferência por herança, legado ou por doação em adiantamento de legítima não se aplicam as alíquotas progressivas por faixa de ganho de capital de 15,0% a 22,5%, previstas no Art. 21 da Lei nº 8.981/1995, que estão reservadas exclusivamente para o ganho de capital decorrente de operações de alienação de bens e direitos de qualquer outra natureza.

A alíquota única de 15,0% está prevista no §1º do Art. 23 da Lei nº 9.532/1997 e somente se aplica na transferência de bens e direitos por sucessão, nos casos de herança, legado ou doação em razão de adiantamento de legítima, quando efetuada a valor de mercado e se este for superior ao valor constante da última declaração de bens do espólio ou do doador.  

Neste ponto, merecem destaques ou reforço alguns conceitos previstos no Código Civil (Lei nº 10.406/2002), que precisam ser garantidos para a correta capitulação e aplicação da lei tributária.

Se uma determinada operação econômica for realizada, sem que esteja muito clara e bem definida em lei, corre-se o risco de o fisco, a princípio, poder interpretar como quiser e cabe ao contribuinte se defender da acusação. Por exemplo, se uma transferência de recursos de uma pessoa para outra não estiver muito bem definida, garantida por documentos hábeis e idôneos e respaldada em lei o seu enquadramento, o contribuinte beneficiário poderá sofrer a imputação de que o valor recebido é uma remuneração por prestação de algum serviço e, por isso, ser tributado, e não uma doação como se estaria pretendendo.

Com efeito, o CC de 2002 define doação como o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o patrimônio de outra pessoa (Art. 538). Não precisa ser necessariamente dos pais aos filhos ou outros parentes entre si. Pode ser também entre particulares. A doação pode se dar entre pessoa física ou jurídica, na condição de doador ou beneficiário da doação. Uma das principais características da doação é que o ato deve representar uma deliberação decorrente da própria vontade do doador e sem haver qualquer contraprestação.

Já a doação de ascendente (pai e mãe, por ex.) para descendentes (filhos, por ex.), ou de um para o outro cônjuge, importa em adiantamento do que lhes cabe por herança (Art. 544 do CC). Temos aqui o que se chama, pelo senso comum, de adiantamento de legítima. Há no ato, a responsabilidade imposta por lei de se levar por inteiro ao inventário, quando da morte do ascendente, o valor dos bens e direitos que já foram recebidos em vida do doador. É o que se chama de colação ou o ato de levar à colação, previsto no Art. 2.002 do CC.

A rigor, o termo adiantamento de legítima é um vocábulo que já estava presente no antigo CC de 1916, ao prever que “a doação dos pais aos filhos importa adiantamento da legítima” (Art. 1.171).

Seja como for, a doação dos pais aos filhos, que é a mais comum, é exatamente uma doação em adiantamento de legítima ou da antecipação de legítima, por se tratar da parte que cabe ao donatário (beneficiário) por herança, que no momento da doação está sendo antecipada.

O que mudou então? Por meio do Agravo Regimental [1] no RE (Recurso Extraordinário) nº 1.387.761, em 22/02/2023, a Primeira Turma do STF decidiu, por maioria de votos, que o IR não incide sobre o ganho de capital apurado por ocasião da antecipação de legítima. O adiantamento de legítima, neste caso, é a doação feita em vida, por pais aos filhos, como pagamento antecipado de bens ou direitos aos futuros herdeiros.

Segue a ementa desta decisão.

Ementa: DIREITO TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO

EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. IMPOSTO SOBRE A RENDA. GANHO DE CAPITAL. ANTECIPAÇÃO DE LEGÍTIMA. AUSÊNCIA DE ACRÉSCIMO PATRIMONIAL. VEDAÇÃO À BITRIBUTAÇÃO.

1. Agravo interno contra decisão monocrática que negou seguimento a recurso extraordinário com agravo interposto em face de acórdão que afastara a incidência do imposto de renda sobre o ganho de capital apurado por ocasião da antecipação de legítima (Lei n° 7.713/1988, art. 3º, § 3º; e Lei nº 9.532/1997, art. 23, § 1º e § 2º, II).

2. Esta Corte possui entendimento de que o imposto sobre a renda incide sobre o acréscimo patrimonial disponível econômica ou juridicamente (RE 172.058, Rel. Min. Marco Aurélio). Na antecipação de legítima, não há, pelo doador, acréscimo patrimonial disponível. Acórdão alinhado à jurisprudência desta Corte. (grifamos).

3. O constituinte repartiu o poder de tributar entre os entes federados, introduzindo regras constitucionais, que, sobretudo no que toca aos impostos, predeterminam as materialidades tributárias. Esse modelo visa a impedir que uma mesma materialidade venha a concentrar mais de uma incidência de impostos de um mesmo ente (vedação ao bis in idem) ou de entes diversos (vedação à bitributação). Princípio da capacidade contributiva.

4. Admitir a incidência do imposto sobre a renda acabaria por acarretar indevida bitributação em relação ao imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD).

Para o STF, na “doação, o doador se desfaz de seu patrimônio, fato jurídico não gerador de aquisição de disponibilidade econômica.”. O que o Supremo quis dizer é que não faz sentido a existência de ganho de capital tributável pelo IR, mesmo que a transferência tenha sido feita pelo valor de mercado do bem, já que o doador nada recebeu e muito menos se beneficiou de qualquer acréscimo do seu patrimônio. Ao contrário, este ficou reduzido em decorrência da doação efetuada.  Assim, para o STF, esta é a razão de fundo para a não incidência do IR sobre o ganho de capital nas doações feitas por pais aos filhos em antecipação de legítima.

Na sequência deste julgado, é possível verificar que para o STF, a leis ordinárias ainda em vigor, que tributam pelo IR o “ganho de capital” estabeleceram que a doação constitui acréscimo patrimonial para o contribuinte doador, em virtude de uma valorização de mercado, o que invade o campo do poder legislativo já preenchido por norma reservada à lei complementar (CTN). A crítica do STF neste ponto é que na doação não há renda auferida pelo doador para que se sujeite ao IR. O doador simplesmente se desfaz de seu patrimônio o que por si só já é um fato jurídico “não gerador de aquisição de disponibilidade econômica”, diz o julgado.

Em relação à tributação de heranças ou doações pelo ITCMD e ao mesmo tempo pelo IR, incidente sobre a diferença entre o valor de mercado e o custo de aquisição registrado na declaração de bens do “de cujus” ou do doador, beira a uma bi-tributação, como ficou registrado no item 4 da ementa acima, como justificativa do STF para a não incidência do IR nesses casos.

Por isso, reiteramos que o imposto de renda tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza, independentemente da denominação que se queira dar, desde que corresponda a um acréscimo patrimonial (Art. 43 do CTN). Receita ou rendimento que não represente acréscimo patrimonial não deve ser tributado pelo IR, assim como uma renda não disponível para ser livremente utilizada pelo contribuinte, também não é fato gerador do IR. Por disponível, deve ser entendida a renda auferida que não contenha qualquer restrição para ser usufruída pelo seu detentor. Por exemplo, o recebimento de valor sobre a venda para entrega futura ou sobre prestação de serviços, cujo resultado somente se concretizará também no futuro, não é renda para fins tributários no presente, que, portanto não pode ser tributada.

Enfim, como é uma decisão de turma do STF, muito embora, por maioria de votos, não tem força de modificar a legislação ordinária, mas permite que o contribuinte, que se enquadre em uma das situações acima, possa ingressar com medida judicial para que os bens sejam transferidos a valor de mercado, sem a necessidade do recolhimento do IR.

Também é possível aos contribuintes que recolheram o IR nos termos aqui examinados estudar com o seu corpo jurídico a possiblidade de medida judicial, visando obter a restituição dos valores recolhidos.


[1] Agravo Regimental é um tipo de recurso cabível em razão de decisão monocrática do Relator, de caráter terminativo ou definitivo, no âmbito dos tribunais. No caso do STF, em linguagem comum, é o recurso que uma das partes pode apresentar contra uma decisão monocrática (dada por um único magistrado da Corte) que seja de caráter terminativo ou definitivo para o processo.