Por José Homero Adabo – Contador e Vice-Presidente Administrativo do Sescon Campinas

O estudo das condições tributárias incidentes e a preparação dos documentos de constituição de empresas imobiliárias são sempre motivos de apreensão para contadores e consultores que atuam na área, principalmente em relação à incidência ou não do ITBI na conferência de bens imóveis ao capital social.

As principais inquietações são: a) Há incidência do ITBI na operação de transmissão de bens imóveis entregues pelos sócios para a integralização (realização) do capital social?; b) Pode-se pleitear a isenção ou o reconhecimento da não incidência do ITBI sobre a operação?; c) A correta base de cálculo é o valor da integralização, o valor de referência levantado pela Prefeitura ou o valor venal constante do cadastro do IPTU?; d) A inclusão no objeto social e nos CNAEs de atividades de compra, venda e locação de imóveis próprios implica, obrigatoriamente, em negativa da Prefeitura de reconhecimento da não incidência?

Questões como estas serão desenvolvidas ao longo deste artigo.

Inicialmente, é preciso trazer à discussão o que diz o Art. 156 da CF/1988 que institui o ITBI:

 “Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

(…)

II – transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

(…)

§ 2º O imposto previsto no inciso II:

I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;” (grifamos).

O problema, neste ponto, é que um bom número de Prefeituras entende que a oração da segunda parte do inciso I, do § 2º, do Art. 156 da CF, que condiciona a não incidência do ITBI, só vale para os contribuintes que não tenham no contrato de constituição as atividades de “compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”, e exigem, administrativamente, o recolhimento incondicional do imposto supostamente incidente. Como veremos, esta compreensão está totalmente equivocada.

A correta interpretação do Art. 156 da CF foi dada pelo STF, por meio do RE nº 796.376/SC, ainda em 05/08/2020, como segue:

“Em outras palavras, a segunda oração contida no inciso I – “ nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil” – revela uma imunidade condicionada à não exploração, pela adquirente, de forma preponderante, da atividade de compra e venda de imóveis, de locação de imóveis ou de arrendamento mercantil. Isso fica muito claro quando se observa que a expressão “nesses casos” não alcança o “outro caso” referido na primeira oração do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF. (grifamos).

Especificamente aqui, a Suprema Corte já estabeleceu que a exigência da condição de não exploração de atividades imobiliárias para a não incidência do ITBI é válida apenas para as operações societárias, muito claramente definidas na Lei das SAs, quais sejam, fusão, incorporação, cisão ou extinção da PJ. É digna de exaltação, pela inteligência da compreensão, a fala do Ministro Alexandre de Moraes, no voto vencedor deste julgamento, conforme acima.

Abaixo, o complemento do voto vencedor:

“(…)

Ou seja, a exceção prevista na parte final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte desse inciso.

(…)

Reitere-se, as hipótese excepcionais ali inscritas não aludem à imunidade prevista na primeira parte do dispositivo. Esta é incondicionada, desde que, por óbvio, refira-se à conferência de bens para integralizar capital subscrito.” (grifamos).

A primeira parte do dispositivo a que se refere o voto vencedor do STF é exatamente a compreensão cabal que os contribuintes precisavam obter, a de que o ITBI não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital …”. Ora, aqui é cristalino o entendimento da Suprema Corte, a seguir traduzido: O ITBI não incide sobre a integralização de imóvel ao capital social, independentemente de a empresa explorar atividades imobiliárias ou qualquer outra atividade, uma vez que a operação de integralização é exatamente um ato de realização de capital.  O termo “realização”, aqui colocado, significa “pagamento” de subscrição das quotas ou ações do capital social. Por consequência, tudo o que se encaixa na primeira parte do inciso I, do § 2º, está imune ao ITBI incondicionalmente. A redação neste ponto, é como se fosse uma alínea (alínea “a”), ficando reservado a uma “invisível” alínea “b”, a partir de “nem sobre a transmissão …” (grifamos).

Portanto, a conclusão prática da decisão do STF é uma só: a integralização de bens imóveis ao capital social de qualquer sociedade é imune ao ITBI, independentemente de a empresa ter ou não preponderância de receitas decorrentes de compra, venda ou locação de imóvel ou de arrendamento mercantil. Aqui a imunidade é incondicional. Já na transmissão de imóveis em operações de fusão, cisão ou incorporação, a imunidade do ITBI está condicionada a que a empresa que recebe os imóveis não tenha preponderância de receitas oriundas de atividade imobiliária.

Como posição legítima das melhores práticas contábeis, os contadores podem e devem assimilar a posição do STF de que o disposto, na primeira parte do inciso I do § 2º, do artigo 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias de incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas, a que se refere a segunda parte do referido inciso I. Somente nestas últimas operações societárias, é que deve ser observada a preponderância ou não de atividade imobiliária.

Por outro lado, se a integralização do imóvel como conferência de bens ao capital social for feita pelo valor constante da última declaração do IR do sócio, que está autorizada pelo Art. 23 da Lei nº 9.249/1995, como é muito comum, e se este valor for inferior ao valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, o excedente será totalmente tributado pelo ITBI.  E neste particular, nem caberia o pedido de não incidência do ITBI junto à Prefeitura do local do imóvel, pois não se trata de casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.

Aqui também é cristalina a posição do STF, para os casos de excedentes em relação ao valor do capital social, tendo sido fixada, na mesma decisão do recurso extraordinário acima referido, a seguinte tese, na forma de repercussão geral, inaugurando o Tema 796:

“A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado“. (grifamos).

O entendimento estabelecido pelo STF, muito embora sem garantias de cumprimento nas demais instâncias do poder judiciário [1], está todo fundamentado entre as duas possibilidades de imunidade tributária prevista no Art. 156, § 2º, I, da CF, em suas primeira e segunda orações do dispositivo legal de comando.

Vale destacar que a tese estabelecida pela Suprema Corte no tema 796 acima se refere exclusivamente à hipótese de integralização de capital, na qual ocorre a subscrição de ações ou quotas com ágio, ou em que a diferença entre o valor integralizado e o valor de mercado do imóvel vai necessariamente para a reserva de capital. Assim, a tese firmada é a de que a imunidade do ITBI “não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”. A imunidade fica restrita apenas ao valor do capital social. O que exceder a este valor estará sujeito ao pagamento do ITBI.

A questão toda não parece terminada. A posição do STF, como acima apresentada, vai em direção oposta ao que prevê o Art. 37 do CTN, conforme abaixo destacado, e que merece uma boa reflexão de todos os estudiosos do tema:

Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.

        § 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinqüenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subseqüentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.

        § 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.

        § 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre o valor do bem ou direito nessa data.

        § 4º O disposto neste artigo não se aplica à transmissão de bens ou direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante. (grifamos).

Pois bem, o Art. 37 do CTN encontra-se atualmente em pleno vigor, mas como a decisão da Corte Suprema vai em direção oposta, isso significa que o CTN, na condição de lei complementar, não teria sido integralmente recepcionado pela CF/1988. 

Neste particular, alguns autores [2] se manifestam no sentido de que prevalecendo esse posicionamento em casos futuros, a decisão do STF implica em se reconhecer que o Art. 37 do CTN não teria sido mesmo recepcionado pela CF/1988. Como decorrência, os pagamentos de ITBI recolhidos às Prefeituras, com base neste artigo, ou em previsões no mesmo sentido, com base em leis municipais, poderão ser questionados na justiça. No limite, poderiam até ensejar um pedido de restituição.

Independentemente da discussão do dispositivo legal ter sido ou não recepcionado pela CF/1988, vale registrar que, de acordo com o § 4º do Art. 37 do CTN, o benefício da não incidência do ITBI se aplica, por exemplo, à operação de cisão ou incorporação, quando a totalidade dos imóveis do patrimônio da pessoa jurídica alienante (cindida ou incorporada) for transmitida a outra pessoa jurídica incorporadora destes bens.

Avançando, um grande número de municípios ainda não adota este entendimento do STF [3], em que pese já ter sido expendido em 2020, e não concede a imunidade do ITBI, nem mesmo sob condição resolutiva, de que seja apurada posteriormente a preponderância ou não de atividade imobiliária, numa alegação inteiramente equivocada de que a imunidade do ITBI só abrangeria a transmissão do imóvel, em realização de capital, quando não houvesse atividade imobiliária na sociedade. Absurdo maior pode ser registrado em algumas Prefeituras, que externam posição, na esfera administrativa, de que a simples inclusão no contrato social de atividade imobiliária, por si só representa a intenção de prática de operações imobiliárias, independentemente da preponderância efetivamente observada nos 2 ou 3 anos antes ou depois da integralização do imóvel, para com isso negar a pretensão de imunidade tributária pedida pelo contribuinte.

Em casos assim, só resta ao contribuinte buscar a Justiça para fazer valer os seus direitos.

A outra controvérsia instalada pelas Prefeituras, que também exige a busca de socorro judicial, é sobre qual deve ser a correta base de cálculo do ITBI, quando lançado pelo poder tributante municipal. O entendimento do STJ no Resp. nº 1.937.821/SP é cirúrgico e providencial e responde bem à questão:

“a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;

b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN);

c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.” (grifamos).

A posição do STJ acima fulmina de uma vez por todas a pretensão das Prefeituras que utilizam para a cobrança do ITBI o valor de referência baseado em pesquisas de mercado ou a base de cálculo do IPTU, ou pior, quando determinam que diante de um valor ou outro, deve ser aplicado o maior. O entendimento da Corte não constitucional máxima também é cristalino: deve ser tomado como base de cálculo do imposto o valor da transmissão, ou seja, o valor dado pelo sócio ou acionista como pagamento de sua subscrição ao capital social (valor da participação das ações ou quotas no capital constante do contrato social).

Finalizando, a orientação indicada aos contadores e consultores é a de levar luzes aos seus clientes, esclarecendo-lhes verdadeiramente sobre as armadilhas criadas por muitas municipalidades e os riscos envolvidos na decisão a ser tomada, indicando-lhes a busca do poder judiciário, sempre que o valor do tributo envolvido for expressivo e justificar o início e manutenção de mais uma contenda.


[1] Ver por ex., ZUGMAN, Daniel, BASTOS, Frederico e GHILARDI, Beatriz. O STF, o ITBI e a integralização de imóveis ao capital social. In: Revista Consultor Jurídico, 27.04.2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-abr-27/opiniao-stf-itbi-integralizacao-imoveis-capital-social>. Acesso em: 12.Junho 2023. Segundo estes autores, hoje, o contribuinte não tem garantias, de que em todas as instâncias do poder judiciário, as decisões vão seguir a mesma linha de entendimento do STF. O risco decorre da interpretação dada se referir à imunidade de duas naturezas distintas: a) imunidade incondicionada (integralização de imóveis como pagamento de quotas ou ações do capital social) e b) imunidade condicionada (aplicável apenas às operações de fusão, cisão, incorporação e de extinção da PJ) que se exige, para obter o benefício de não pagamento do ITBI, a não preponderância das atividades imobiliárias do contribuinte que recebe os imóveis. Estas imunidades chocam-se com o disposto no Art. 37 do CTN, que, aparentemente, havia sido recepcionado pela CF/1988, mas que agora com a decisão do STF passou a ser questionável.

[2] Ver por ex., FINOTTI FERREIRA, Davi e OLM FERREIRA, Diogo. STF e imunidade do ITBI na integralização de capital: procurando pelo ‘lado bom’ In: Revista Consultor Jurídico, 31.08.2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-ago-31/finotti-ferreira-stf-imunidade-itbi>. Acesso em: 15.Junho de 2023. Neste artigo, os autores explicitam a existência de controvérsia de entendimento, no sentido de ter sido ou não recepcionado pela CF/1988 o disposto no Art. 37 do CTN.

[3] Em sede de defesa ou de recurso administrativo, o Município poderia assimilar a posição do STF, como aqui discutida, mas não é isso o que se observa na prática dos Conselhos Municipais de Contribuintes. Também não se verifica eventual envio de projeto de lei à Câmara Municipal, para adaptação da legislação do ITBI com base nesta decisão da Suprema Corte.