Por José Homero Adabo – Contador e Vice-Presidente Administrativo do Sescon Campinas

O presente artigo é uma continuação do mesmo tema tratado no trabalho anterior intitulado “STF decide pela não incidência do IR sobre heranças e doações”, publicado pelo Sescon Campinas em 29/08/2023 (clique aqui e leia o artigo).

Sucede que, num período de apenas 6 meses, o STF deu uma decisão em sentido contrário ao entendimento já manifestado sobre idêntica temática, que é a incidência ou não do IR sobre heranças e doações. Fora o descrédito que sempre vem à tona, na prática, a medida gera insegurança jurídica aos contribuintes e aplicadores do direito.

Vamos tratar a seguir exatamente do mesmo assunto, mas agora com a nova decisão da Suprema Corte.

Antes, algumas considerações necessárias para justificar a abordagem da matéria.

É voz corrente nas rodas de estudiosos do direito tributário que é dos advogados o campo de estudo do direito tributário, por serem os profissionais “operadores do direito”. Neste particular, os contadores não são também operadores da aplicação de questões tributárias, todas igualmente reguladas em lei? Sim! Também é dito nessas rodas de estudo que os contadores são igualmente operadores da “aplicação” do direito tributário antes da ocorrência do fato gerador. Por um ângulo mais rigoroso, os contadores são operadores ex-ante e os advogados são operadores ex-post facto do direito tributário. Claro é que a atuação ex-post, própria do direito tributário, exige um aprimoramento diferente, mais acentuado na busca de interpretações, visando defesa, recursos, embargos, liminares, etc. para livrar o contribuinte da condenação num episódio de suposto descumprimento de regras tributárias após a ocorrência da fato gerador do tributo. Mas, os contadores são igualmente operadores ex-ante em relação aos fatos geradores de tributos de mesmo interesse do direito tributário, tendo a responsabilidade de conhecer a legislação vigente aplicável a cada fato; saber interpretar, para oferecer a melhor aplicação à luz do conhecimento disponível dos comandos tributários naquele momento; criar mecanismos de registro e aferição dos fatos geradores, base de cálculo e apuração dos tributos; avaliar os seus reflexos nos custos e receitas dos contribuintes, etc. Por isso é que a moderna literatura contábil já fala em fusão de conhecimentos e técnicas de aplicação entre o direito tributário e a contabilidade, como se fosse uma única área de conhecimento e um só objeto de estudo de uma mesma ciência. Muitos autores já estão se manifestando sobre o que vem sendo chamado de doutrina contábil-tributária.

Assim, este artigo se constitui numa continuação da publicação anterior, devendo ser estudado em conjunto, para um melhor entendimento do assunto pautado. Todas as questões de fundo lançadas no primeiro escrito, que não se referem à decisão explicitada naquele momento pelo STF, continuam em pleno vigor.  Também prevalecem os institutos de direito e seus entendimentos, os conceitos de doação, herança, transmissão, etc., tais como expressos no primeiro artigo. O que altera, para fins de aplicação do direito tributário, é o novo entendimento expendido pela Corte Superior, agora no mês de agosto último.

Para conferir rigor à exposição, é preciso pontuar que nestes 6 meses não houve qualquer modificação na legislação tributária do IR ou do ITCMD incidente sobre estas operações. O que altera é apenas a interpretação dos Ministros.

O que mudou, então? A decisão de fevereiro de 2023 (Agravo Regimental no RE 1.387.761, de 22/02/2023) foi dada pela 1ª Turma, por maioria de votos, tendo como relator o Ministro Luís Roberto Barroso. Neste recurso extraordinário o que está em discussão é a tributação pelo IR na doação em adiantamento de legítima (doação em vida com a obrigação de levar à colação em favor dos demais herdeiros, quando da morte do doador).

De forma esquematizada, aqui a posição do STF pode ser assim resumida:

a) Para a Suprema Corte, somente incide o IR quando houver aumento do patrimônio do contribuinte:

“(…) Esta Corte possui entendimento de que o imposto sobre a renda incide sobre o acréscimo patrimonial disponível econômica ou juridicamente.”

“Na antecipação de legítima, não há, pelo doador, acréscimo patrimonial disponível.”

b) “Admitir a incidência do imposto sobre a renda acabaria por acarretar indevida bitributação em relação ao imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD).”

Para o STF, a tributação pelo IR nas doações e nas transmissões de bens e direitos na sucessão causa mortis (herança, por ex.) se configura bitributação (cobrança do IR e do ITCMD sobre uma mesma base de cálculo), o que é vedado pela nossa Constituição.

    c) Na “doação, o doador se desfaz de seu patrimônio, fato jurídico não gerador de aquisição de disponibilidade econômica.”. (grifamos em todas as transcrições acima).

    A rigor, esta fala denota bem que o doador, tido pela legislação ordinária em vigor, como o contribuinte na operação, “não adquiriu”, “não auferiu” ou “não gerou” qualquer renda tributável, por que não houve aquisição de disponibilidade econômica ou renda nova. Ao contrário, este doador teve redução de seu patrimônio. Daí o entendimento de que não deve sofrer a tributação pelo IR.

    Assim, não haveria que se falar em incidência do IR na doação, já que houve mera transmissão gratuita de propriedade do bem ou direito, sem acréscimo patrimonial, se considerados ambos os contribuintes na mesma operação. Mas, como a legislação ordinária (Art. 23, da Lei 9.532/1997) continua em pleno vigor, é o entendimento do STF que garante ao contribuinte a não incidência do IR nesta específica operação, na forma de precedente, o que contribui para a firmação de jurisprudência normativa.

    d) Em suma, nesta decisão o Supremo entende que o imposto de renda tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza, independentemente da denominação que se queira dar, desde que corresponda a um acréscimo patrimonial (Art. 43, II, do CTN).

    Já, a decisão de 6 meses após (Agravo Regimental no RE 1.437.588, de 22/08/2023) foi exarada, por unanimidade de votos, pela mesma 1ª Turma do STF, tendo como relator o Ministro Luiz Fux. Neste recurso, a questão em discussão é a transmissão de herança. Na decisão há mesmo uma completa inversão de entendimento. Se não, vejamos:

    a) Neste processo, para a Suprema Corte, incide o IR quando houver a transmissão de herança, mesmo que haja apenas a atualização monetária do imóvel, sem qualquer aumento real do valor investido na compra ou em benfeitorias. Aqui pode-se fazer a comparação, já que no primeiro Acórdão o assunto é herança e doação em adiantamento de legítima e neste último, trata-se apenas de herança. A doação como adiantamento de legítima é também herança.

    “… no IRPF a base de cálculo é o acréscimo apurado entre o valor de mercado no momento da transmissão da herança e o valor de aquisição do bem, …”

    Parafraseando o Relator neste Agravo, o STF ainda diz que, em relação ao IR, há sim a incidência sobre o patrimônio acrescido referente ao ganho de capital dos ativos herdados.”.

    É importante salientar neste ponto, que o Relator não vê que, na transmissão de bens e direitos por herança, a diferença entre o valor de mercado no ato de transmissão e o custo de aquisição do bem é uma mera atualização monetária, fruto de processos inflacionários na economia, e que não representa efetivamente nenhum acréscimo de patrimônio da família. Esta posição contraria frontalmente a decisão anterior do mesmo STF, além de desrespeitar o disposto no Art. 43, inciso II do CTN, que fixa como fato gerador do IR os proventos de qualquer natureza que não sejam classificados como renda, “assim entendidos os acréscimos patrimoniais …”. Aqui não há qualquer acréscimo do patrimônio familiar! Logo, não deveria sofrer a tributação pelo IR sobre um suposto ganho de capital. Não há também qualquer ganho de capital na transmissão de heranças!

    Mas, a nova postura do STF estabelece que sobre a diferença a maior entre o valor de mercado e o custo de aquisição do bem ou direito, constante da declaração do IRPF do de cujus, volta a sofrer a incidência do IR à razão de 15%.

    b) Na contramão da decisão anterior, agora para o Ministro Relator, a cobrança do IR e do ITCMD sobre a herança transmitida (ambos os tributos incidem praticamente sobre a mesma base de cálculo) não se constitui absolutamente em bitributação.  Logo, em seu pensamento, não se aplica a vedação constitucional. Friamente, declara que por serem fatos geradores distintos (o relator quer dizer que são operações diferentes), não se constituem em bitributação.

    Para o Ministro Relator, a cobrança do IR e do ITCMD sobre a herança transmitida não se constitui absolutamente em bitributação. Logo, em seu pensamento, não se aplica a vedação constitucional, ou seja, podem perfeitamente ser cobrados ambos os tributos sobre uma mesma base de cálculo.

    “… na transmissão sucessória de direitos e bens encontramos fatos geradores distintos entre si.“.

    No caso o IRPF, há incidência sobre o patrimônio acrescido referente ao ganho de capital dos ativos herdados.”.

    “Quanto ao ITCMD, a incidência se dará sobre a transmissão causa mortis da propriedade.”.

    Arremata, afirmando que:

    “Assim, se no IRPF a base de cálculo é o acréscimo apurado entre o valor de mercado no momento da transmissão da herança e o valor de aquisição do bem, o ITCMD está relacionado com a base de cálculo é o valor venal do bem transmitido causa mortis.”.

    Nesta última decisão ficam em aberto, pelo menos as seguintes questões, que o Ilustre Relator não considerou: a) Se há ganho de capital sobre os ativos herdados, quem se beneficiou deste ganho, uma vez que, por ex., o imóvel herdado é o mesmo, sem quaisquer benfeitorias acrescidas, mas ao contrário, muitas vezes deteriorado pelo uso no tempo em que permaneceu com o falecido; b) Apenas o fato de a base de cálculo do IR ser um “suposto” acréscimo entre o valor de mercado e o custo de aquisição, enquanto a base do ITCMD está relacionada com o valor venal do bem, é razão suficiente para a validação de seu argumento de que ambos os impostos não estarão incidindo numa mesma base de cálculo? Do ponto de vista econômico, há diferenças entre o valor venal do bem (base de cálculo do ITCMD) e o valor de mercado (aferição da base de cálculo do IR)? Não!

    Sabemos que a diferença entre o valor de mercado e o valor venal, em levantamentos fidedignos e sem vieses estatísticos, é zero! E mais, se eventualmente, em virtude de “erros estatísticos” de levantamento de preços, houver diferença entre valor venal e valor de mercado, qual é o benefício material que os herdeiros ganharão com o recebimento dos bens pela herança? Apenas por amor à contabilidade e aos números, se houver alguma diferença entre ambas as categorias de medição, o seu valor é materialmente relevante? Não! Nunca será relevante eventual diferença entre essas formas de cálculo. Se houver, será em razão de erros estatísticos decorrentes da amostra utilizada.

    Bem, questões como estas ficaram sem respostas e desprovidas de qualquer consideração na decisão que mudou completamente o núcleo do entendimento exarado pelo STF, neste curtíssimo período de 6 meses.